domingo, 18 de dezembro de 2011

I


“É muito difícil para nós, enquanto pessoas sensíveis e muito crentes nos sonhos e na beleza das coisas – que muitas vezes elas não têm – aceitarmos o mundo de hoje, cheio de vigaristas, interesseiros e dissimulados, que embora não pareçam, acabam sempre por revelar a sua verdadeira identidade. E se houve algo que aprendi nestes oito anos é que as pessoas não mudam, simplesmente se revelam para se adaptarem mais facilmente à situação mais propícia.”

Esta sou eu. A mais verdadeira essência do meu ser.
Esta sou eu a viver num mundo que não é o meu mas continuo com a esperança de que um dia me irei habituar.
Esta sou eu, tentando desesperadamente compreender o porquê das coisas, o porquê de as pessoas agirem de tal forma e darem azo a essas coisas que nós não sabemos compreender ou que são simplesmente incompreensíveis.
Esta sou eu, completamente perplexa neste momento por saber o quão cega tenho sido ao longo dos anos e por agora, ao descobrir tudo, perceber como levei a minha ingenuidade ao extremo, não querendo ver que por vezes as pessoas que mais amamos são as únicas capazes de nos deitar abaixo.

Um ano antes

“Maria Adams é, neste momento, umas das modelos mais bem pagas do Mundo. A jovem de nacionalidade portuguesa, cimentou a sua posição entre as melhores após oito anos a desfilar para marcas como Dolce&Gabanna, YSL, Valentino, Armani, entre muitos outros gigantes da moda. A modelo está agora destacada pela ONU como embaixadora da boa vontade, depois de muitos trabalhos solidários em países carenciados.”
NY Post

Pousei o jornal em cima da secretária e esbocei o maior sorriso que consegui para o meu pai, que se encontrava à minha frente.

- Como é que te sentes?

Eu sabia que ele estava orgulhoso do meu sucesso mas, como sempre, manteve o seu ar sério e duro, não deixando transparecer qualquer tipo de sentimento afectuoso. O meu pai era sempre tãoooo querido.
- Bem! – Ele manteve o olhar posto em mim, olhando-me fixamente e repreendendo-me, pois sabia que eu estava a tentar ser modesta – Ok! Sinto-me muito bem! É um orgulho para mim, pai. Estou muito feliz.

Quase não conseguia assentar os pés no chão, pois tudo o que me apetecia era pular, saltar, sair à rua e gritar, qual menina pequena. Mas, felizmente – ou talvez não – tinha aprendido a controlar-me de tal forma que agora nem sabia aproveitar verdadeiramente os momentos bons, pois algo dentro de mim me fazia retrair e recalcar todo o meu entusiasmo para o mais profundo recanto da minha mente.

- Sim, mas agora é continuar a trabalhar… - Ele abotoou o botão do seu fato e pegou na pasta que estava a seus pés – Difícil não é chegar ao topo filha…

- Difícil é manter-me lá! – Completei a sua frase quase por inércia, já que todos os dias ele me dizia aquilo – Eu sei pai, eu sei.

Ele anuiu, visivelmente satisfeito com a minha disciplina e virou costas, deixando aquele cubículo a que eu chamava escritório mergulhado num silêncio de morte. Fiquei a olhar fixamente para a parede, estática, mergulhada em pensamentos felizes que deixaram o meu corpo num frenesim doce, que tentei saborear ao máximo, agora que estava sozinha.
Há oito anos que trabalhava como modelo e há oito anos que ansiava ardentemente por um reconhecimento, que, embora tenha tardado, tinha chegado na altura certa, naquele que eu considerava ser o auge da minha carreira depois de um ano inteiro a trabalhar incessantemente, quase sem tempo para descansar, para respirar, para ter um tempo só para mim... Com dezassete anos chegava finalmente o meu reconhecimento! E agora era trabalhar a dobrar para o reconhecimento não desaparecer – como tantas coisas na vida que demoram tanto tempo a construir e num minuto são destruídas – e continuar a lutar para cimentar ainda mais a minha posição naquele mundo que eu tão bem conhecia e do qual já precisava de algum espaço. “Talvez tire umas férias”, pensei. “Talvez vá visitar a minha mãe a Portugal e fique por lá uns tempos.” E assim conseguia fugir do entusiasmo à minha volta e voltar a ter um pouco de privacidade.
Olhei pela janela, para a rua coberta com dezenas de fotógrafos e repórteres, que esperavam uma declaração minha depois daquela notícia acabada de chegar. Eles falavam entre si, uns fumando um cigarro, outros verificando os aparelhos e limpando as lentes, mas tinham sempre um olho na porta para avistarem qualquer movimento suspeito e saírem correndo, à procura das respostas às suas perguntas. Desanimei, pois tudo o que queria era ir para casa, para o meu pequeno e acolhedor apartamento, descansar, ver um pouco de televisão, falar com a família e os amigos e talvez combinar uma saída, para falarmos das novidades. Encostei-me à ombreira da janela, apoiando o queixo na mão e batendo com os dedos sucessivamente e alternadamente na pedra fria, à espera que os minutos passassem e que aqueles fotógrafos e repórteres acumulados saíssem dali para que pudesse sair sem, pelo menos, ser interpelada por uma dezena de pessoas.

- Menina Maria? – O meu manager, Hugh, espreitou pela porta, esboçando um sorriso rasgado, tão característico dele – Vou agora lá a baixo falar com os jornalistas. Quer que diga alguma coisa em particular?

Reflecti durante uns instantes mas acabei por abanar a cabeça, pois apenas queria que aquilo fosse rápido.
Com a mesma repentinidade com que a sua cabeça apareceu do lado de dentro do escritório, desapareceu, mas voltou a aparecer novamente quando eu gritei pelo seu nome, ao aperceber-me que não tinha dito tudo.

- Diga menina!

- Hugh… por favor, despache-se – Tentei ser o mais delicada possível mas tudo o que apetecia era sair a gritar para que todos desaparecessem dali.

Ele anuiu, atencioso como sempre, voltando a desaparecer do ângulo de visão que conseguia atingir.
Sentei-me na cadeira rotativa, a desesperar por não ter nada que fazer e então, caí na tentação de começar a roer as unhas. O meu vício de infância, aquele que todos diziam ser extremamente prejudicial e que todos me incentivavam a deixar mas que nem todos os vernizes do mundo próprios para o efeito conseguiam fazer-me parar. Continuava a roer as unhas, tanto como quando criança, apesar de agora o cuidado ser maior, pois já tinha ouvido muitas reclamações por parte de responsáveis de produção, que tinham de recorrer a unhas de gel para colmatar a falta das mesmas. No entanto, uma vez por outra, ainda as roía até fazer ferida, quando a ansiedade e o nervosismo a isso obrigava. E apesar de todas as queixas, dava graças a Deus por este ser o meu único vício! 
A minha concentração em busca de unhas para roer foi interrompida pelo toque do telemóvel, que me sobressaltou devido à sua altura. Olhei para o ecrã e vi que se tratava de Liam. Sem tirar os dedos da boca, atendi-o, colocando-o em altifalante.

- Hello! – Tentei mostrar todo o meu entusiasmo, já quase morto devido ao tempo de seca que estava a passar agora – Como estás?

- Como está a minha maninha preferida?

Um barulho que me pareceu ser o de um motor, era o som de fundo da nossa conversa semanal.

- Preferida e única que tu tens! – Ambos não contemos o riso, elemento indispensável entre nós – Como estás? E a mãe?

- Estamos óptimos. A apanhar um calor de morte… Fazes falta aqui. Já pensaste em vir cá passar uns dias?

“Sim, já pensei! Pior é dizer isso ao pai!”, pensei, revirando os olhos perante a complexidade que aquilo iria causar no meu pai, que iria desenvolver ainda mais a sua veia dramática no momento em que soubesse.

- Queria muito mas agora vai ser difícil… - Tentei contornar o assunto pois embora eu quisesse muito ir, agora não era o momento indicado – Sabes como é o pai. Ainda por cima agora soube-se aquilo emitido pela Forbes... 

- Ah pois! – Não estava a vê-lo, mas naquele momento eu soube que ele estava a sorrir – Parabéns linda! Já não era sem tempo.

- Obrigado! – Larguei as unhas pela primeira vez desde que tínhamos iniciado a conversa e sorri de volta, sabendo que, telepaticamente, ele saberia – Soube há minutos. Foi o pai que me disse.

- Agora já sabes… Não te podes desleixar.

- Siiiim, maninho… - disse, revirando os olhos novamente, pois essa conversa já me estava a deixar farta – Já ouvi isso milhões de vezes hoje.

Ele continuou a falar, mas a minha atenção desviou-se para a porta e para Hugh, que novamente espreitava e novamente esboçava aquele sorriso.

- Liam, Liam… Espera um pouco, sim?

Larguei imediatamente as unhas, evitando que ele visse e me desse o típico sermão – e felizmente consegui, pois ele não pareceu ter dado por nada.

- Sim, Hugh?

- Pode sair, menina. Eles já foram embora.

- Graças a Deus! – disse, esboçando um sorriso de alívio. Ele retribuiu e encostou a porta, pois percebeu que eu estava no meio de uma conversa.

- Bem, Liam… Já te ligo, pode ser? Vou aproveitar a vou para casa. Ligo-te assim que chegar. Kiss kiss – Emiti o som de um beijo, que acabou ser recíproco.

Desliguei o telemóvel, mandando-o para o interior da minha mala Louis Vuitton XL, deixada em cima da mesa toda aberta e desorganizada – como sempre! – E apressei-me a dar um ar mais arrumado à secretária, que estava cheia de papéis soltos e relatórios gigantes. Depois de achar que estava tudo visivelmente arranjado, agarrei na mala, sustentando-a na dobra do pulso, peguei no meu casaco que estava pendurado nas costas da cadeira e dirigi-me à porta, não sem antes olhar para trás e sorrir, orgulhosa da minha limpeza em tempo recorde.
Na garagem privada, o meu Audi A7, esperava imponente por mim, brilhante e luzidio, a prenda mais cara que algum dia me tinham dado. E adivinhem quem me deu? O querido do meu pai! Ele podia ser um chato que parecia viver de mal com a vida, mas quando queria, ele conseguia ser bastante generoso.
**
Abri a porta do apartamento e logo um cheiro a limpo me inebriou. A empregada particular do prédio tinha lá estado nessa manhã e tinha limpo tudo, depois de quase dois meses sem ser passado um pano pelos móveis. Nem sempre dava autorização para a empregada o limpar, tudo dependia do meu calendário, do sítio onde estivesse ou até mesmo das coisas valiosas que tinha em casa, pois, apesar de não ter qualquer queixa em relação a ela, nunca podemos saber aquilo que as pessoas  fazem na nossa ausência.
Larguei as chaves na mesa do hall, assim como a mala e o casaco e corri à cozinha, à procura de algo para comer. Não tinha fruta nem iogurtes e, como tal, fui repenicando aqui e ali, uma bolacha e outra, até me sentir satisfeita e conseguir esperar pelo almoço sem cair na tentação de comer mais alguma coisa. Descalcei os meus sapatos de salto, deixando-os espalhados no chão da cozinha mas prometendo a mim mesma voltar lá para os arrumar – o que, como é óbvio, eu me iria esquecer – e caminhei descalça até à sala de estar. A minha sala de estar era acolhedora, bem mais compacta que a cozinha e bem mais quente e era, exceptuando o meu quarto, o sítio do apartamento onde passava a maior parte do meu tempo, quando podia estar em casa. O meu único sofá é grande, todo decorado com almofadas coloridas e depois tenho duas poltronas sem costas, compradas à pressa pois percebi que um sofá apenas, embora grande, pode não ser suficiente quando tenho visitas em casa. O resto da decoração foi a minha mãe que comprou, durante uma das poucas vezes que veio a Nova Iorque e devo confessar que quando olho para a sala, me revejo a mim, tendo em conta que ela sabe exactamente aquilo que eu gosto e, embora seja demasiado simplista, é nesse ambiente que me sinto bem.
- Hey Sasha!

A minha cadela Sasha, uma chow-chow de um ano, veio até mim, a abanar o seu rabo felpudo e deitando a sua língua azul de fora, em sinal de brincadeira.

- Então minha linda? – Agarrei-a entre as minhas mãos e apertei-a, fazendo aquilo a que normalmente chamava “O urso” – Queres ir à rua, é?

Ela rodou sobre si própria, abanando todo o corpo num ritmo frenético e soltando latidos de entusiasmo. Sasha ia comigo para todo o lado, pois não arriscava deixa-la sozinha em casa entregue ao meu pai, que se mostrava bastante prestável para passeá-la sempre que eu não podia, mas que, por vezes, esquecia-se completamente da existência da pobre cadela, que, embora fosse asseada e muito bem ensinada a fazer as necessidades na rua, muitas vezes não aguentava horas e horas presa entre estas paredes.

- Está bem, vamos lá à rua!

Alardeei, pois não me apetecia mesmo nada ir passeá-la enquanto podia ficar relaxada no meu sofá a ver o CSI na CBS. No entanto, enchi-me de força, mentalizando-me de que seriam apenas uns minutinhos e que voltaria para cima mais depressa do que pensava.
Calcei os meus ténis num instante e coloquei-lhe a trela, encaminhando-me para o elevador, pronta a descer quinze pisos para chegar à rua.
**

Estava a passeá-la à volta do quarteirão, tentando ser o mais discreta possível, pois não queria ser abordada por ninguém naquele momento. Tentei ao máximo que Sasha se despachasse mas ela era sempre o cão mais vagaroso do Mundo. Precisava de cheirar umas dez vezes para decidir se seria naquele sítio ou se deveria procurar outro. Fui salva do meu passeio monótono por Mikki, a minha melhor amiga, que há uns meses atrás tinha deixado o país e rumado à Austrália, à procura de uma nova aventura numa vida que ela considerava ser demasiado dominada pela rotina.

- Estou? Mikki?

- Hello, hello! – O seu entusiasmo contagiava-me sempre – Como estás? Muito trabalho?

- Estou a descansar temporariamente. A passear a Sasha… - Nem foi preciso demonstrar o meu desagrado pois ela percebeu-o imediatamente.

- Uau, estás muito entusiasmada. Coitada da Sasha!

- Coitada mas é de mim! Então e tu? Conta-me novidades…

Tive de puxar Sasha, quando ela se tentou aproximar de um cão parado à porta de um prédio. Ela não era de muita confiança nas suas relações entre seres da mesma espécie.

- Oh, nada de especial. Está tudo na mesma. Mas vi a notícia sobre ti – Ela pareceu orgulhosa, tal como ficava sempre que conseguia atingir uma meta que impunha a mim própria – Parabéns, honey!

- Ohhhh… - Naquele momento, instalou-se em mim um sentimento de nostalgia, dos tempos que passamos juntas, das tardes, das noites de cinema, das compras que fazíamos e onde esgotávamos quantidades exorbitantes de dinheiro… Acima de tudo, tinha saudades dela e da companhia que ela era para mim, quando eu praticamente não tinha ninguém.

- Vais à gala dos Fashion Awards amanhã? – Hugh tinha-me falado sobre isso por alto e disse-me que era possível ser considerada revelação do ano mas não me lembrava de ele ter mencionado nenhum tipo de convite. Mas, partindo do óbvio, se poderia ser considerada revelação do ano, então é porque tinha sido convidada.

- Sim, sim. Vou. Só ainda não sei o que vou vestir. Tenho de falar com a Olivia.

Encaminhei Sasha de volta para o nosso prédio, tendo em conta que ela já tinha feito as suas necessidades e que agora aguentava até à noite.

- Vê lá se escolhes o vestido mais bonito, percebes? Tens de estar linda de morrer.

Não consegui sustentar o riso e soltei uma gargalhada estridente, retribuída por ela. Falamos durante mais uns minutos, até eu chegar à esquina do meu prédio, onde me deparei com uma dúzia de jornalistas a postos para conseguirem as suas fotos e declarações. Apressei-me a despedir-me de Mikki e respirei fundo, preparando-me para os encarar.

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