domingo, 1 de abril de 2012

XIV


- Então, conta-me mais sobre ti filha!

A avó de John, que eu agora sabia chamar-se Eveline Thompson, tinha-nos servido um chá preto com umas bolachinhas de manteiga, para a acompanhar-nos no chazinho da noite, que ela dizia beber “Every single night!”.

- Hmm – Hesitei durante uns instantes, pois não sabia se John queria que eu contasse quem eu era na verdade e o que fazia.

- Eu trabalho para a Maria, avó!

Como se ele tivesse lido os meus pensamentos, interpelou a nossa conversa, livrando-me de uma situação constrangedora.

- Ai sim? – Eveline olhou para mim por cima dos óculos, enquanto tragava um pouco do seu chá – Mas tu tens alguma empresa?

- Não, avó, ela é modelo! Eu trabalho como segurança…

Eveline hesitou uns instantes, enquanto processava a informação. Certamente, era uma senhora bastante conservadora e a ideia de eu ser modelo não ia propriamente a favor dos seus princípios reservados.

- Ai mas tu não és daquelas que se despe para as revistas, pois não? – Ela olhou-me de alto a baixo mas o olhar sereno de John tranquilizou-me – Ai também deixa-me que te diga, tu pareces um esqueleto andante, nem maminhas tens…

- Avó! – John interrompeu a conversa, apercebendo-se do rumo que aquilo ia tomar – Avó, não diga essas coisas!

- A menina não se importa, pois não? – Ela parecia bastante indignada com o facto de eu ser modelo, por causa da minha fisionomia magra e praticamente sem curvas, o que era perfeitamente compreensível tendo em conta a evolução do conceito de beleza ao longo dos tempos – As verdades são para serem ditas filho, ora essa…

John limitou-se a rir, fazendo-me compreender que aquilo era uma atitude perfeitamente normal da parte da primeira pessoa que eu conhecia da sua família.

- Então mas conta-me, Maria! Como é que se conheceram?

Ela pousou a mão em cima da minha perna, pondo-me mais à vontade. Desta vez sabia que John não me iria salvar pelo que teria de começar por algum lado e explicar tudo da melhor maneira possível.

- O meu pai contratou o John para ser meu segurança – não que eu precise de um! – Fiz este pequeno reparo para que ela não pensasse que eu me achava importante – E conheci-o quando ele se apresentou, há cerca de um mês atrás.

Ambas olhámos para ele, sentado numa poltrona à nossa frente, atento àquilo que conversávamos.

- Finalmente, o meu menino assentou, ahn? – A maneira orgulhosa como ela falava dele transparecia um amor incondicional, típico de avó-neto, que, infelizmente, eu não conhecia – É um amor de pessoa, não é filha?

John pressionou-me com o seu olhar, o que me fez soltar uma pequena gargalhada, por me sentir tão intimidada e pressionada. Sabia, no meu íntimo, que ele era boa pessoa mas não sabia como o dizer ou como o explicar.

- É… - A minha resposta saiu astuciosa, num tom baixo de voz – Apesar de ainda não o conhecer bem…

- Ai querida, nem sabes o que perdes! Obras-primas destas só se conhecem uma vez na vida – Eveline soltou uma gargalhada divertida.

- Avó! Já chega disso, por favor – Ele levantou-se da poltrona, visivelmente incomodado pelos elogios que lhe eram tecidos – É sempre a mesma coisa quando as pessoas vêm cá a casa!

Ele afastou-se, seguindo em direcção à cozinha, com Sasha sempre a seguir-lhe o passo.

- Ai, ai, minha querida – Ela aproximou-se de mim, falando quase num sussurro – Eu sei que vocês disseram que não são namorados mas eu bem vejo pela forma como ele olha para ti! Toma bem conta do meu menino, ele já passou por tanto…

Aquela confissão tocou-me, pela sinceridade desmedida. Acendeu-se em mim uma luz verde, uma réstia de esperança – esperança esse que, realmente, nunca morreu – e na minha cabeça as palavras daquela senhora, plena conhecedora das suas palavras, começaram a remoer-se.  

- Ainda me lembro quando ele era um menino… - Eveline sorriu, orgulhosa, relembrando certamente os tempos de infância do neto – Muito activo! Aqui em Surrey todos o conheciam, ele falava com toda a gente…

- Ele sempre morou consigo? – Queria aproveitar que ele não estava por perto para tentar saber mais coisas sobre John, coisas que, talvez, só aquela senhora tão disponível para falar me poderia dizer.

- Não querida, vivíamos com a minha filha, a mãe do John… - Ela respirou fundo, como o que fosse proferir de seguida lhe massacrasse o coração – Ivy, é o nome dela. – Eveline fez uma pausa no seu discurso, cada vez mais amargurado e depois proferiu numa voz calma e uniforme, como se estivesse a treinar aquela frase há muito, muito tempo – Ela abandonou o John quando ele tinha três anos.

Embora não fizesse parte daquela família, o meu coração mirrou. Não que eu alguma vez tivesse passado por situação semelhante mas não considerava a minha mãe uma mãe presente, pelo menos não uma mãe presente como eu gostava que ela fosse. Mas isso não era, nem de perto, um abandono. Não podia calcular aquilo por que John passou, durante toda a sua infância sem uma mãe – apesar de Eveline me parecer ter desempenhado esse papel na perfeição, ou, pelo menos, ter tentado colmatar o espaço vazio que aquela mãe deixou no crescimento do seu filho, ainda um bebé. E o pai? Eveline não mencionou nada que estivesse relacionado com a presença do pai de John enquanto viveram em Surrey… Apesar de eu querer muito saber o que era feito do pai dele, contive-me, com medo que a resposta contivesse uma amargura daquela plenitude.

- O John nunca me contou nada disso…

- Ele é um rapaz muito reservado, filha. Dá-lhe tempo! – Ela voltou a pousar a sua mão na minha perna, como que me confortando, ao perceber que estava chocada com o que tinha acabado de saber.

Há medida que ia sabendo mais coisas sobre John, o puzzle ia-se formando na minha cabeça. Percebia agora muitos dos seus comportamentos, comportamentos que me tinham magoado mas que eu agora compreendia por que motivo ele os tinha.
Ele voltou para o pé de nós, com uma lata de cerveja na mão, sereno, como eu nunca o tinha visto.

- Vó, estava a estragar-se no frigorífico! – Ele apontou para a lata, bebendo um gole de seguida.

- Ai sim filho, bebe isso! Se não o beberes ninguém o faz… - Depois ela dirigiu-se a mim – Sou a única pessoa aqui em casa, uma velha jarreta não vai andar aí a beber cervejas, não é verdade?

Ela soltou uma gargalhada, que eu me apressei a retribuir.

- Ai filho! – A senhora levantou-se num salto, ao olhar para o relógio de parede que tinha exposto na sala – O Kenay está em casa da vizinha Aurora com o pequeno Ben! Esqueci-me completamente! – Ela calçou os seus chinelos de pelo num apresso e pegou nas chaves de casa, encaminhando-se para a porta – Tenho de ir busca-lo, já se faz tão tarde!

- Eh, avó, nem pensar! – Ele bebeu a cerveja de uma assentada e pousou-a em cima da mesinha de centro, perto das chávenas e da xícara de chá – Está de noite e a casa da vizinha Aurora ainda fica longe… Fique aqui que eu e a Maria vamos lá.

Ele levantou-se e agarrou na minha mãe de forma suave, fazendo-me seguir atrás dele. Eveline nem tentou ripostar, nem eu o faria, pois isso contra John era uma perda de tempo. Sasha queria seguir-nos mas decidi deixa-la em casa, a fazer companhia a Eveline, até nós voltarmos.

- Quem é o Kenay? – Corria um vento desagradável e tentei agasalhar-me, puxando os dois lados da camisa um contra o outro, perto do pescoço.

- O gato da minha avó…

- E o gato da tua avó vai para casa da vizinha? – Fiquei um pouco para trás e John estendeu-me a mão, para que eu a agarrasse e ele me pudesse puxar, de forma a alcança-lo.

- O Ben, o neto da Dnª Aurora, costuma passar por casa da minha avó e leva o gato. É sempre assim!

- E a tua avó deixa? – John estava a andar a um passo bastante apressado, o que tornava bastante difícil para mim conseguir acompanha-lo, sendo, por vezes, necessário agarrar-me ao seu braço, para ganhar balanço e alcança-lo – Gostei da tua avó, ela é muito simpática.

- A minha avó é sempre simpática – Ele olhou para mim e lançou-me um sorriso ternurento – Acredita que ela não vê uma pessoa nova há imenso tempo.

- Deve ser difícil para ela estar sem ti…

Assolou-me um sentimento de pena por Eveline, que passava o ano inteiro ali sozinha, praticamente no meio do nada, já com alguma idade e apenas acompanhado de um gato que nem sequer passava o dia com ela. E, tendo em conta que ela criou John e o educou, devia ser muito complicado para ela ver partir o seu único neto, sem saber quando o voltaria a ver.

- Ela habituou-se com muita facilidade. Além disso, eu venho aqui sempre que posso.

Já tínhamos andado uns bons metros e agora estávamos numa pequena estrada, sem qualquer tipo de habitação por perto. John continuava a acelerar o passo e desta vez, agarrei-me ao seu braço e já não o larguei.

- Sempre que quiseres podes pedir folga e vir visita-la. Eu não me importo, John – Ele não respondeu, mergulhado em pensamentos – Nunca pensaste leva-la para Nova Iorque?

- Claro que pensei, Maria – “Claro que ele já pensou nisso”, pensei, apercebendo-me da impertinência da minha pergunta – Mas já viste a diferença de Nova Iorque para aqui? Este sítio é calmo, pacato e mais importante, respira-se ar puro todos os dias. Não ia levar a minha avó para um sítio como Nova Iorque, ela não merece isso.

- Ela merece estar perto de ti… - Sussurrei, baixando a cabeça. Sabia que o assunto não era da minha conta mas agora que conhecia alguém da família dele, ainda para mais com um papel tão importante na sua vida, custava-me saber que estavam separados daquela forma.

Ele não teceu qualquer comentário. Continuamos a andar, contra o vento, rumo a uma casa que parecia nunca mais aparecer.
Ele parecia-me descontraído, os seus músculos não estavam tensos e ele parecia estar em plena harmonia com este cenário. Não me lembrava de ter visto John assim em nenhuma ocasião desde que o conhecia.
Um carro vermelho, com as luzes máximas ligadas apareceu na curva, a andar a cerca de vinte km/h, sempre aos solavancos, tal era a irregularidade do terreno. Desviamo-nos um pouco da estrada, começando a andar pelo meio das ervas mas ao chegar perto de nós, o carro parou e o vidro desceu.

- Johnny Boy! No way! – Um rapaz loiro de olhos azuis, que fumava um cigarro, espreitou para o lado de fora, soltando uma gargalhada prazerosa. 

- Henry?

Nos lábios de John surgiu um sorriso de orelha a orelha e, sem aviso prévio, ele lançou-se na direcção do carro e apertou efusivamente a mão do rapaz.

- Fogo, puto, há tanto tempo que não te via! Espera um minuto!

Ele terminou de fumar o seu cigarro e largou-o pela janela, deixando ainda uma pequena chama cor-de-laranja a brilhar no chão. Parou o carro, tirando de lá a chave e abriu a porta, chegando perto de John e dando-lhe um abraço fraterno, durante alguns segundos.

- Parece que passou uma eternidade meu!

O rapaz loiro encostou-se ao carro, cruzando os braços e passando a perna direita à frente da perna esquerda. Tinha um ar desleixado, típico britânico: camisa vermelha escura aberta, calças de ganga dobradas em baixo pela altura do tornozelo e uns sapatos Oxford em camurça castanha, já um pouco rotos e estragados. John podia ter raízes britânicas mas não o via a vestir-se assim.

- É, também já não vinhas cá há um tempo – Por cima do ombro de John, o rapaz visualizou-me – Que indelicadeza, Johnny Boy! Nem apresentas a tua amiga…

John olhou para trás, onde eu me mantinha encolhida, tentando mostrar-me alheia a toda a conversa e fez-me sinal para que me juntasse a ele. Dei uns passos em frente e acabei por ficar mesmo a seu lado, de frente para o rapaz.

- Maria, este é o meu melhor amigo de infância, Tristan – Aproximei-me dele, dando-lhe dois beijos ao de leve nas faces, afastando-me em seguida, pois o cheiro a tabaco que emanava da sua boca era insuportável – E Tristan, esta é a Maria, uma amiga…

Tristan soltou uma gargalhada abafada, colocando uma mão à frente da boca para disfarçar.

- Mas espera… - Tristan sorriu, tornando-me perceptível o seu sorriso, um pouco amarelo e sem cuidados, talvez por causa dos seus maus hábitos – Eu conheço-te? – Ele semicerrou os olhos, analisando-me minuciosamente.

- Nã…

- Sim, é quem tu estás a pensar… - John interrompeu-me, percebendo o óbvio.

Tristan soltou uma gargalhada, desta vez nada discreta, que fez eco naquele espaço deserto.

- Tu és a Maria Adams? – Ele parecia incrédulo, ao mesmo tempo que me mirava com atenção – Meu Deus, a Anna tem umas cinquenta revistas lá em casa e tu és capa de, pelo menos… - Ele tentou fazer uma estimativa aproximada, debruçando-se a pensar no assunto – quarenta e cinco?

Ele riu-se e John acompanhou-o na risada. Não sabia se haveria de me juntar a eles, se haveria de ficar envergonhada por estarem a falar de mim daquela maneira comigo presente.

- Eh puto! – Tristan deu uma leve palmada no ombro de John, esboçando um daqueles sorrisos depravados, que se distinguiam ao longe – Andas bem acompanhado!

Este último comentário foi feito directamente para John, que tentou desculpar-se mas foi interrompido pelo amigo, que continuou a falar.

- Então e a Karen?

Fez-se um momento de silêncio pois John estava hesitante na sua resposta. Senti-o ficar tenso, mesmo sem lhe tocar e o seu nervosismo denotou-se pela forma como ele, automaticamente após a pergunta, colocou as mãos nos bolsos do casaco e esboçou um sorriso tímido, quase imperceptível.

- A Karen? Nunca mais a vi!

“Quem é a Karen?”, era tudo o que me apetecia perguntar, apesar de saber que a conversa não era comigo e que era errado intrometer-me.

- Vê lá tu que nem sabia que vocês tinham acabado. Quem me disse foi a Anna, há coisa de dois meses. Então como é que isso aconteceu meu? Eu cheguei a pensar que vocês iam casar!

“Ausch!”.
Um arrepio percorreu-me a espinha e eu senti-me uma miniatura naquele momento. Encolhi os braços, cruzando-os ao peito e baixei a cabeça, não por não estar interessada na conversa mas por aquela afirmação vinda de terceiros me ter afectado em cheio. Sabia que não era dirigida a mim mas acabei por me lesar, mesmo tentando controlar-me. Então John tinha uma pessoa! Depois de uma noite recheada de novidades e depois de um tempo em que tudo parecia correr bem, chegava a pior informação de todas, aquela que eu não queria saber, nem sequer pensar.

- É, Tristan! As coisas entre nós não resultaram. É assim! – Ele encolheu os ombros e, pelo seu discurso, deu para notar que ele estava a tentar contornar a conversa – Passado é passado!

- É isso mesmo! – O rapaz voltou a dar-lhe uma palmada no braço – Então e como é que vocês se conheceram?

- Eu trabalho para ela, sou guarda-costas particular.

Esperava que Tristan se desmanchasse a rir mas ele não o fez, muito pelo contrário, mostrou-se bastante sério e atento ao desenrolar da conversa.

- Aproveitei a oportunidade! Como já deves saber, desisti do exército… Tinha de arranjar um trabalho.

- É puto, fizeste bem! Há que aproveitar qualquer oportunidade que surja. Isto não anda nada bem…

- Então e tu? – John apressou-se a sair daquela conversa assim que surgiu a primeira oportunidade – Agora fumas, é?

- Há relativamente pouco tempo… Stresses no trabalho! Sempre alivia um pouco – Tristan encolheu os ombros, como se o facto de fumar compulsivamente não fosse nada significativo – Já foste ver a tua avó? Ainda há uns dias estive lá com a Anna!

- Estivemos lá agora. Vamos buscar o Kenay a casa da vizinha Aurora.

- Ah, o Kenay! – Ele soltou uma gargalhada – Sempre na vadiagem, esse malandro!

- Pois… - John olhou para o relógio, apercebendo-se de que já estava ali fazia um bom bocado – E já está tarde, ainda temos de voltar para Londres.

Tristan também olhou para o seu relógio e constatou exactamente o mesmo.

- É verdade meu! Vais ficar muito tempo por aqui?

John abanou a cabeça, desgostoso.

- Não, parto amanhã de madrugada para Nova Iorque. Mas olha… - Ele tirou o telemóvel do bolso de trás das calças – O teu número ainda é o mesmo? – Tirou os olhos do ecrã do objecto tecnológico e olhou-o, para confirmar que a resposta era afirmativa – Vou mandar-te uma mensagem para ficares com o meu número e depois é só combinarmos uma conversinha um dia destes!

O rapaz anuiu, agradado com a ideia de pôr a conversa em dia com um grande amigo que já não via há muito tempo. John despediu-se dele, dando-lhe um abraço sentido, daqueles abraços que sabes que não voltarás a repetir durante um bom período de tempo e depois também eu me despedi, voltando a dar-lhe dois beijos na face. Vimo-lo afastar-se pela estrada em pedra e só quando o carro já não era visível aos nossos olhos é que John voltou a iniciar o caminho. Só que, desta vez, já seguíamos bastante mais afastados.

- Desculpa não te ter contado sobre a Karen… - John quebrou o silêncio entre nós, fazendo-me estremecer.

Limitei-me a anuir apenas, pois não queria que da minha boca saíssem um turbilhão de coisas que não devia nem necessitava de dizer.

- Fomos namorados durante três anos. Ela era daqui, de Surrey! – Ele parou de falar, olhando para mim, que, embora não estivesse a olhar para ele, consegui percebe-lo pelo canto do olho – Quando fui para o exército, as coisas acabaram por não resultar, talvez devido à distância, não sei… - A voz dele assumia cada vez mais uma conotação diferente: ele parecia melancólico, pensativo, mergulhado em recordações que não consegui esclarecer se seriam agradáveis ou incómodas – Foi difícil mas já superei… E pronto, não é necessário falarmos mais sobre isto!

- Se calhar não superaste John… - Abanei a cabeça, pois sabia que naquele discurso havia qualquer coisa mal esclarecida, qualquer coisa que o faria voltar atrás na primeira oportunidade – Quem fala como tu o fizeste, ainda não superou nada.

Ele estancou no caminho, obrigando-me a parar uns metros à frente, quando já se começava a ver as primeiras casas depois de um longo caminho de arvoredo.

- Como é que podes estar tão certa disso?

- Oh John, não é preciso um doutoramento para perceber isso. Ages como se fosses um durão, uma pessoa fria e intransponível mas isso não passa de uma máscara. Essa rapariga magoou-te e até eu, que nem te conheço, consigo ver isso – Ele mantinha-se uma estátua, atento ao meu discurso – A forma como falaste dela e como contaste a vossa história, que foi tão resumida e tão contornada que deu para perceber tudo. Ouve… - Dei uns passos em frente, chegando-me mais perto dele – Nem acredito que vou dizer uma coisa destas mas devias procura-la, falar com ela, sei lá… Tentar saber como ela está. Tu estás conf…

- Maria… - Ele pousou as mãos nos meus ombros suavemente, assim que me alcançou – Tu não sabes o que estás a dizer. O teu discurso até podia ser interessante mas nesta última parte espalhaste-te ao comprido.

Ele riu-se, talvez pensando no que eu tinha acabado de dizer e eu não sabia se isso podia ser considerado bom ou mau sinal. Mas, acima de tudo, senti-me aliviada por perceber que aquilo que estava a dizer não fazia qualquer sentido – ou pelo menos, assim ele me fazia crer.

- Mas conta lá, porque é que nem acreditaste que ias dizer aquilo…

- De tanta coisa que eu disse, isso foi a única coisa que tu captaste? – Sem dar por isso, um sorriso delineou-se nos meus lábios.

Ele correspondeu o meu sorriso e começou a andar, desta vez mais calmo e relaxado.

- É esta casa aqui… - Ele apontou para uma pequena casa de pedra, com apenas duas janelas e um quintal pequeno que dava para a estrada.

Ele seguia à minha frente e abriu o pequeno portão, entrando naquele pequeno quintal. Bateu duas vezes na pequena porta de madeira, até uma senhora alta e esguia a abrir, espreitando para o lado de fora, desconfiada.

- Oh John! – Ela abriu a porta toda, abrindo-lhe os braços – Vieste buscar o Kenay?

John abraçou a senhora levemente, que assim que teve oportunidade, lançou-me um olhar inquiridor.

- É a tua namorada?

- Não, não! – Ele riu-se, atrapalhado, puxando-me por um braço para que conhecesse a senhora – É uma amiga, a Maria.

Dei-lhe dois beijos na face e esbocei um sorriso cordial, ao mesmo tempo que ela se apresentava.

- Ben! Filho! – Ela chamou o rapazinho a altos berros, fazendo-me estremecer com tamanha brutidade – Está sempre metido no quarto a jogar videojogos. Querem entrar? – Ela escancarou a porta, fazendo-nos sinal para entrarmos.

- Não, não é preciso vizinha Aurora – Ele olhou para o relógio, verificando as horas – Já se faz tarde e nós temos de ir.

Um rapazinho apareceu à porta, ostentando um robe vermelho felpudo e trazendo nos braços um gato em tons de creme, com muito pelo, focinho achatado e olhos verdes claros. A mim pareceu-me um gato de raça persa, mas a verdade é que nunca tinha visto nenhum de cores semelhantes. John apenas passou a mão pela cabeça do menino, que não deu hipóteses de conversação – deve estar numa idade complicada – e agarrou no gato ao colo, despedindo-se da senhora e iniciando o caminho de volta. Caminho esse que se revelava bastante comprido.

- É um persa? – Perguntei por curiosidade mas também para iniciar uma conversa, caso contrário cairíamos num silêncio constrangedor.

- Não sabemos. Foi oferecido à minha avó há uns três anos. Sabes como é, no que toca aos cães todos sabem as raças, os gatos é sempre a mesma coisa – Ele acariciou a cabeça do gato, que se roçava a ele carinhosamente.

- Tu gostas de gatos?

- Não, nem por isso. Acho-os demasiado independentes… Prefiro os cães – Ele sorriu para mim – A minha raça preferida são os pastores belgas, mas confesso que a Sasha foi uma boa escolha.

Sorri, orgulhosa, ao pensar na minha linda Sasha.

- Sempre gostei de chow-chow, só nunca tinha tido oportunidade de comprar um, por causa do trabalho… Mas assim que abrandei, foi logo a primeira coisa que fiz.

Ele apenas anuiu, deixando-me sem qualquer tema de conversa. O caminho foi feito em silêncio e John estava mergulhado em lembranças, talvez muitas lembranças que aquele sítio trazia, tão ingénuo e tão bonito.
**
- Peço desculpas pelo atraso!

Entrei apressada no estúdio fotográfico plantado num dos edifícios centrais de Picadilly Circus, aparentemente, um dos sítios preferidos de Anne para fazer sessões fotográficas para a sua conceituada revista. Fui encaminhada por uma rapariga para uma pequena sala, onde estava tudo preparado para ser iniciada a maquilhagem e o penteado. John e Sasha seguiram-me, já que iriam ficar comigo durante toda a sessão. Despi-me a um canto, tapada por um biombo e deixei apenas as cuecas, enrolando-me num roupão branco que tinha sido deixado especialmente para mim. Sentei-me no cadeirão, olhando-me ao espelho, enquanto esperava que a maquilhadora e a cabeleireira chegassem. Deparei-me com umas olheiras gigantes, que cada vez ficavam mais acentuadas, talvez por as minhas noites de sono não estarem a ser particularmente bem-sucedidas. Culpa de quem? Olhei para John através do espelho, ele que estava completamente rendido aos encantos de Sasha, sempre tão querida e amorosa.

- Hola Maria! Como estás? – Uma senhora de cabelo cor-de-rosa entrou na sala, com um sorriso contagiante e sotaque espanhol – Soy Helena, a tua cabeleireira.

Esbocei um sorriso divertido, ao perceber que ela estava a fazer um esforço enorme por misturar espanhol com português, apesar de eu achar que tal não era necessário pois as duas línguas eram bastantes parecidas e muito fáceis de compreender para ambos os nativos.
Cumprimentei-a com um aperto de mão breve e suave.

- Vamos solamente esticar el pelo, entendes-me?

Anuí, bastante interessada em saber qual era a ideia de Anne para aquela sessão.

- Ela quer que estejas muy natural… - Ela pegou numa escova e começou a pentear-me os longos cabelos castanhos com nuances cor de cobre – Ela está muy chateada, no se qué passou.

“Ui!”, Anne chateada não era muito bom sinal. Se ela já não era particularmente fácil de agradar e de entender, chateada tornava-se um tédio.
A senhora espanhola de cabelo cor-de-rosa esticou-me o cabelo em menos de dez minutos e depois surgiu outra senhora, esta talvez um pouco mais nova, que começou a maquilhar-me, bastante concentrada para não se enganar nos requisitos propostos por Anne.
Penso que John deve ter apanhado uma das maiores secas da sua vida. Levantou-se e sentou-se tantas vezes que nem foram possíveis contar pelos dedos, para não falar de que deve ter passado todos os jogos de que o seu telemóvel dispunha, daí ter ficado sem qualquer tipo de entretinimento.

- Prontíssimo! – A senhora olhou para mim, levantando-me a cara através de um puxão no queixo e depois de assoprar para que os excessos de sombra se espalhassem, dirigiu-se até à porta, abrindo-a e olhando para John – Vem?

John olhou para mim e depois novamente para a senhora.

- Hmm, não se preocupe – Saí em seu auxílio pois percebi que ele não sabia o que era suposto fazer – Ele pode ficar.

Ela ainda hesitou, prostrada em frente à porta, a olhar-nos com ar inquisidor mas acabou por anuir e sair, fechando a porta atrás de si. Mas pareceu-me bastante desconfiada, o que, para mim, já não era de estranhar.

- Pareces uma árvore de Natal! – Ele esboçou um sorriso divertido ao olhar-me através do espelho – Se andasses assim no dia-a-dia, meu deus! Não aguentava.

O meu riso saiu sarcástico mas a verdade foi que ele teve a sua piada. Levantei-me e fui até atrás do biombo, onde vesti as roupas que estavam dispostas para mim: um body vermelho e azul com aplicações douradas incrustadas e uns sapatos azuis a condizer. Também pendurada, deparei-me com uma bandeira australiana e fez-se um clique na minha cabeça – a revista Blitz tinha considerado a Austrália o país do ano e aquela sessão deveria ser alusiva a isso, ainda mais sendo Anne australiana. Comecei a vestir o body com muito cuidado mas o fecho era traseiro e senti grandes dificuldades em fecha-lo.

- Precisas de ajuda? – John gritou do outro lado, ao ouvir os meus impropérios e lamentações.

- É o meu fecho, não consigo fecha-lo!

- Posso ir aí?

Nem me deu tempo para responder, pois ele já estava bem atrás de mim, pronto para me ajudar. Pegou no fecho com cuidado, pousando as suas mãos macias na minha pele, fazendo-me estremecer perante aquele toque. Ele puxou o fecho muito devagarinho, deixando-me apreciar e aproveitar cada segundo daquele momento. Depois de tudo, só assim, às escondidas e muito dissimuladamente, é que eu podia apreciar cada minuto passado com ele.

- Pronto! – Ele pousou a mão direita no meu ombro e eu virei-me lentamente, puxando os cabelos para a frente e mostrando-lhe a minha silhueta – Se não fosses tão magra, ficava-te melhor – Ele sorriu, divertido, pois sabia perfeitamente como detestava qualquer tipo de comentários em relação à minha silhueta.

Dei-lhe uma leve palmada no peito, acabando também por mostrar um sorriso divertido, pois sabia que ele só dizia certas coisas para me tirar do sério.

- Mas, tu sabes, és linda de qualquer maneira!

Ele encolheu os ombros e coçou a cabeça, demonstrando o seu nervosismo. E lá estávamos nós, ali naquele espacinho reduzido, a uma distância milimétrica, a sentir a tensão e a atracção que se estava a acumular entre nós. Ele ficou a fitar-me, com um sorriso maroto nos lábios, sorriso esse que tentei ignorar mas tal foi impossível.

- O que é? – Ele não parava de fazer pressão e não consegui evitar um riso miudinho nervoso – Pára de me olhar assim, John!

- Maria… - Ele agarrou nos meus cabelos, arrastando-os carinhosamente para trás das minhas orelhas e desceu a mão para o meu pescoço, onde a deixou pousada – Nós não podemos ignorar isto!

Deixei-me levar pelo momento e acabei por pousar a minha mão em cima da mão dele, acariciando-a, de certa forma. 

- John… - Senti-o aproximar-se, pois era certo e sabido que iria reclamar – Tu nã…

Os seus lábios tocaram carinhosamente nos meus, procurando um encaixe e assim que encaixaram na perfeição, ele aplicou uma certa pressão, uma pressão de desejo, desejo esse que eu também sentia. Deixei-me levar por aquele beijo, era completamente impossível resistir. John entalou o meu lábio inferior entre os seus e em movimentos tímidos, um pouco a medo, ele tentou obter uma resposta, uma resposta que significaria que ele poderia avançar.
Bateram à porta. Fiquei sobressaltada e quebrei imediatamente o beijo, afastando-me de John. Olhei para ele, confusa com o que se tinha passado e circundei-o, disposta a ir até à porta mas uma mão forte puxou-me o braço.

- Nós temos mesmo de conversar, Maria! – Ele falou baixinho, tornando-se praticamente inaudível.

Anuí, organizando as coisas na minha cabeça e dirigi-me até à porta, abrindo-a de rompante.

- Ah, Karen, és tu!

Karen era assistente de Hugh, trabalhava com toda a papelada e era ela que as arquivava correctamente. Embora Hugh se tivesse demitido, ele não lhe garantiu emprego caso ela abandonasse o seu trabalho connosco, pelo que ela decidiu ficar. Tinha estado uns tempos de férias em Londres e ia juntar-se a mim, voltando para Nova Iorque quando eu voltasse. Era uma boa conselheira e muitas vezes não dispensava as suas opiniões e críticas.

Ela entrou, com um monte de papéis na mão, e ao cruzar o seu olhar com John, que estava encostado à parede perto do biombo, foi quase como se ela tivesse tido um desequilíbrio, pois todos os papéis caíram no chão, dando-se uma autêntica azáfama de folhas brancas.

- John? – Ela arregalou os olhos, levando a mão ao peito.

Olhei para ambos, intervaladamente e foi aí que percebi, pelo olhar surpreendido dos dois, que ela era a Karen que eu menos esperava.

Queridos leitores, aqui vos deixo mais um capítulo. Quero pedir desculpa pelo tempo que demorei a escreve-lo mas a inspiração não foi muita. Quero também avisar que estarei fora durante uma semana, de férias da Páscoa, pelo que só depois de dia 9 posso iniciar a escrita de um novo capítulo. Espero que compreendam. Agradeço também o apoio dado, muito obrigado por tudo!
Espero que gostem!
Ps: Gostava de saber se alguém sabe como posso pôr gifs animados no blog, para que eles se mexam sem ser necessário clicar em cima deles. Agradeço qualquer ajuda.
Maria * 




4 comentários:

  1. Adorei este capitulo querida! Que maravilha
    Foi delicioso! Estava até a desejar que não acabasse..
    Adoro como escreves e todo o enredo que estas a dar À história. Linda, sem dúvida nenhuma
    Vai me custar esperar tantoooo ! Mas compensa sempre
    Beijinhos
    Ana Sousa

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  2. Ohhh, soube tão bem ler este capítulo,está tãooo lindo e escreves muuito bem :D
    Não é díficil por gifs no blog, é assim quando fores para uma nova mensagem carregas no botãozinho que diz "Inserir imagem" escolhes o gif que queres e pronto, é a mesma coisa como quando inseres imagens, mas tens que por o gif como tamanho original senão não dá... Se não conseguires fazer isso, manda um comment para o meu blog que eu explico-te melhor :)
    Continua.
    Beijo :D

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  3. Gosto muito da tua fic, espero que tenha muitos mais capítulos.
    Tou a começar uma com uma fic com uma amiga passa por lá e comenta! A tua opiniao é importante para nós!!

    http://astuasescolhas.blogspot.pt/

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  4. Nos queriamos te pedir, se podias divulgar a nossa fic, por favor!

    obrigada!

    http://astuasescolhas.blogspot.pt/

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